SYR9218: O problema do dia anterior e do dia seguinte
ARTIGOPOLÍTICAINTERNACIONAL
É muito fácil ter esperanças ao olhar para uma revolução que destrói—ou, pelo menos, busca destruir—o status quo de um país autoritário.
Nas primeiras horas do dia 8 de dezembro do ano passado, saiu de Damasco o voo SYR9218. O público desconhecia o seu destino. O principal tripulante do voo era Bashar Al-Assad.
A fuga de Bashar Al-Assad marcou o fim de um capítulo sombrio da História síria. Este capítulo, iniciado em 2011, deve ser lembrado pela tortura, aprisionamento de opositores políticos, guerra, fome e pela destruição de cidades inteiras.
O herói da história? Ahmed al-Sharaa. É, porém, mais conhecido pelo seu nome de guerra: Abu Mohammed al-Jolani(1). O seu “nome de guerra” foi criado e utilizado em qual guerra? Al-Sharaa lutou no Iraque e na Síria como membro da Al-Qaeda. Esta gloriosa e santa revolução é liderada por um ex-membro da Al-Qaeda. Um capítulo tenebroso da história síria termina e outro—que desperta esperança e paixões—começa nas mãos e pelas mãos de um ex-membro da Al-Qaeda. Se isso não é suficiente para gerar algum tipo de ceticismo e, eventualmente, até cinismo...
Mesmo se, momentaneamente, esquecermos as passadas filiações do líder da revolução—que já se transformou em líder do país—, acabaremos por cair, mesmo assim, no ceticismo se confrontarmos os resultados de diversas revoluções que geraram (como a atual revolução síria vem gerando), otimismo na comunidade internacional. A destruição do autoritarismo é admirável, mas é inútil, e até contraproducente, se não pensarmos no dia após a revolução.
Além de ceticismo e cinismo concretos—oriundos do que está acontecendo na Síria, com todas as suas particularidades—, não me falta (e até o final deste texto, se eu for bem-sucedido, não faltará ao leitor) ceticismo e cinismo in abstracto, que a mera ideia de “revolução do bem” é capaz de gerar em mim.
Slavoj Žižek—o grande filósofo esloveno, rotulado como marxista, mas que se diz “mais hegeliano do qualquer outra coisa”—frequentemente, ao falar sobre revoluções, diz que está disposto a vender a sua mãe como escrava para assistir V for Vendetta: Part II(2). O filme V for Vendetta(3), de 2005, como presumo que o meu leitor saiba, mostra um cenário distópico muito semelhante ao retratado no livro 1984, de Orwell. No filme (4), vemos, no final, uma revolução na qual toda a população assume a identidade de Guy Fawkes (no filme, “V”) e participa na destruição do sistema distópico e totalitário vigente.
A questão subjacente ao comentário cínico de Žižek é o tal ceticismo nascido do simples estudo da História. A questão, que já fui antecipando, não é relativa ao sucesso da revolução no sentido de meramente destruir o status quo. A verdadeira questão é: “e depois?”. E se a revolução der certo no primeiro momento? De forma geral, ou a revolução fracassa inicialmente e não chega, sequer, a acabar com o sistema, ou fracassa porque não consegue suprir adequadamente o vazio gerado pelo seu sucesso. No segundo caso, é criado um vácuo de poder que acaba sendo preenchido por forças mais totalitárias do que as que estavam inicialmente no poder, traindo os ideais revolucionários assumidos inicialmente.
Infelizmente, a História nos dá inúmeros exemplos que confirmam esta ideia. A chamada “Primavera Árabe”, por exemplo, foi um desastre. No Egito, a instabilidade gerada após o fim do governo de Mubarak foi suficiente para que Sisi assumisse o poder. O último se mostrou inquestionavelmente mais autoritário do que o primeiro. No Iêmen, o resultado da revolução foi o fortalecimento de grupos terroristas como a Al-Qaeda e o ISIS. Com a exceção da Tunísia, o fracasso da Primavera Árabe (que com os resultados alcançados, tem um nome tragicamente irónico) foi sentido de forma dolorosa em todos os países que participaram dela (além dos referidos, Líbia, a própria Síria, Iraque, Bahrain...). Um pouco de ceticismo é mais do que justificável. É necessário.
Além destas questões todas, temos, aqui, um problema de caráter mais metodológico: contar uma história que acabou de terminar e outra que acabou de começar.
Hegel, no penúltimo parágrafo do prefácio do seu livro, Princípios da Filosofia do Direito (5) —que deveria ser de leitura obrigatória para todos os juristas e pretensos juristas—, escreve (6):
(…) philosophy, at any rate, always comes too late (…). As the thought of the world, it appears only at a time when actuality has gone through its formative process and attained its complete state. (…) When philosophy paints its grey in grey, a shape of life has grown old, and it cannot be rejuvenated, but only recognized, by the grey in grey of philosophy; the owl of Minerva begins its flight only with the onset of dusk. (7)
De forma resumida (talvez, excessivamente resumida, mas é o que a natureza destes textos impõe), só é possível analisar um acontecimento, um fenómeno ou uma ideia quando ela se torna passado. A Coruja de Minerva—símbolo de sabedoria—só voa quando o crepúsculo de determinado momento histórico chega.
Assim, pela sua própria morfologia, a Filosofia (que pode ser substituída por “sabedoria”(8)) e a História (enquanto área do conhecimento) estão sempre atrasadas.
Esta é a natureza dialética da História: o que está acontecendo agora determinará o que acontecerá. O que aconteceu determinou aquilo que está acontecendo agora. Cada capítulo da História vai se integrando aos capítulos seguintes. Imagine que os capítulos da História são episódios de uma série. Nós só conseguimos entender aquilo que acontece na série quando, no início do episódio presente, vemos, “in the previous chapter...”. Noutras palavras, por estarmos muito envolvidos com toda a trama da série, não conseguimos compreender os acontecimentos do episódio que estamos assistindo. Só com o início do episódio seguinte e com a contextualização daquilo que ocorreu no capítulo anterior, é que entendemos alguma coisa. Só entenderemos o que aconteceu no episódio de hoje na semana que vem.
O problema, porém, continua (como de costume). Vimos que só conseguimos estudar a História quando ela se encontra já cristalizada, isto é, quando ela passa a fazer parte de um passado perfeito, finalizado, cristalizado (9).
A pergunta que se coloca, então, é, “qual capítulo da História verdadeiramente se encerra?”. A Revolução Bolshevik (em 1917) não foi uma continuação das revoluções de 1905 e 1912? Ela não foi uma resposta ao absolutismo Romanov? Não será, então, a história da União Soviética uma continuação da história da Dinastia Romanov? E a história da Federação Russa? Não será esta uma continuação da história soviética e, desta forma, uma continuação da história do Império Russo?
Hoje, um russo é incapaz de escrever a história do Império que acabou no início do século passado, porque do ponto de vista da História, ele ainda não acabou. Da mesma forma, um francês ainda não pode escrever a história da Revolução Francesa, porque, em certo sentido, ela ainda não acabou.
O passado é tão imprevisível quanto o futuro. A História é uma matéria impossível. Quanto à Síria, mas, também, quanto a outras guerras, revoluções e acontecimentos aparentemente “históricos” e relevantes, só nos resta observar e esperar que a História vá acontecendo diante dos nossos olhos, sempre com a angústia de estarmos presos ao Tempo, incapazes de prever o que acontecerá e incapazes de entender completamente o que aconteceu. Pelo menos, não vamos precisar vender as nossas mães como escravas para saber o que acontecerá nos próximos capítulos.
1 - “Mohammed”, no seu caso, às vezes, é transliterado para “Mohammad” e “al-Jolani”, “al-Julani” ou “al-Jawlani”.
2 - https://www.facebook.com/circulodebellasartes/videos/zizek-talks-about-v-for-vendetta/10154681626047647/ https://youtu.be/ZUpa3rGrMt4?si=ixmkskUbHgX2Oh7r
3 - V for Vendetta. (2005). Dirigido por James McTeigue. EUA: Warner Bros.
4 - Já que, neste ano, o filme completa duas décadas de existência, me reservo a liberdade de dar spoilers sem nenhum tipo de inibição.
5 - Ou, simplesmente, Filosofia do Direito, dependendo da tradução.
6 - O meu conhecimento sobre a língua alemã é ínfimo. No máximo, consigo convencer alguém que não fala nada de alemão de que eu, sim, falo e entendo a língua. Procurando versões brasileiras e portuguesas do livro, me deparei com traduções mal-feitas e profundamente diferentes umas das outras. Assim, prefiro fazer a citação em inglês (língua na qual eu li o livro) e remeter para a versão original para quem falar alemão e tiver a coragem e paciência necessárias.
7 - HEGEL, G. W. F. (1821) 22.ª ed. Elements of the Philosophy of Right, Cambridge: Cambridge University Press. p. 21.
8 - Afinal, a palavra Filosofia (Φιλοσοφία) é uma construção derivada de φιλία (amizade) e σοφία (sabedoria).
9 - Uma vez que não sabemos como as ideias e acontecimentos serão cristalizados, tentar prever o futuro é tentar o impossível.
Porto, 2025.
Daniel Sister.