Papa Francisco: o fim de uma esperança progressista?
ARTIGO
Na passada segunda-feira, imediatamente após a celebração da Páscoa, o mundo despediu-se do Papa Francisco, figura incontornável da Igreja Católica e símbolo de um tempo marcado pela tentativa de aproximação entre a instituição religiosa e as realidades humanas do nosso tempo. A sua morte não assinala apenas o fim de uma liderança espiritual marcante, mas deixa em aberto o futuro de um período verdadeiramente abrangente, em que Francisco procurou dar lugar a “todos, todos, todos” na Igreja.
Desde o início do seu serviço, Francisco demarcou-se pela simplicidade, recusou os luxos e os formalismos tradicionais associados ao cargo, optou por habitar na residência de Santa Marta, em vez do tradicional Palácio Apostólico, e trocou o trono dourado por uma cadeira simples e os discursos solenes por palavras próximas e acessíveis. Esta escolha de vida, mais humilde e próxima do quotidiano das pessoas, refletiu-se também na forma como se relacionou com os fiéis. Mais do que falar para os crentes, Francisco quis falar com eles, acolhendo dúvidas, dores e inquietações, mesmo aquelas que durante décadas foram ignoradas ou reprimidas.
Procurou, acima de tudo, dar voz aos marginalizados e acolhê-los com genuína empatia, desde os pobres esquecidos nas periferias do mundo, até aos migrantes empurrados para as margens da indiferença, passando pelas vítimas de abusos silenciadas por décadas de encobrimento institucional. Francisco abriu também as portas a divorciados e homossexuais, durante muito tempo excluídos pela Igreja, e sobretudo às mulheres, cuja presença foi, durante séculos, secundarizada e remetida para papéis de menor importância.
Mas o alcance da sua ação foi ainda mais amplo, na medida em que conseguiu aproximar os jovens da Igreja, que por diversos motivos tinham deixado de se reconhecer na instituição. As Jornadas Mundiais da Juventude tornaram-se momentos de encontro e diálogo entre gerações, onde o Papa não falava de cima, mas caminhava ao lado. Para além disso, também muitos não crentes viram em Francisco uma figura de autoridade moral e humanidade desarmada. Sem impor dogmas, foi capaz de inspirar e desafiar consciências com o poder do exemplo e da coerência entre palavra e ação. Assim, tornou a Igreja mais próxima, mais humana e menos centrada em si própria.
Durante o seu pontificado, Francisco assumiu também uma crítica firme às estruturas internas da própria Igreja. Denunciou abertamente o clericalismo, essa visão de Igreja centrada numa elite eclesiástica que se distancia da vida concreta das comunidades. Condenou a rigidez doutrinária que transforma a fé num conjunto de normas inflexíveis, esquecendo que a misericórdia, a escuta e a compaixão são os pilares do Evangelho. Enfrentou ainda a dura realidade dos abusos sexuais cometidos por membros do clero, reconhecendo a gravidade do problema e quebrando o silêncio institucional que durante décadas o encobriu. Nas suas palavras e ações, apontou para uma Igreja menos egocêntrica e mais comprometida com o sofrimento real das pessoas, capaz de caminhar com elas em vez de lhes impor caminhos.
Apesar do seu esforço e coragem notáveis, a verdade é que Francisco deixa apenas as portas entreabertas. Muitos dos caminhos de reforma que iniciou permanecem por concretizar, e continuam a encontrar obstáculos dentro da própria estrutura eclesial. Igualmente fora dessa estrutura, entre católicos menos progressistas do que o Papa Francisco, também existe uma resistência significativa à inclusão e acolhimento. Não deixa de ser profundamente lamentável que esta discussão ainda exista e seja necessária em pleno século XXI. É igualmente importante sublinhar que, quando a Igreja, enquanto instituição, recorre a interpretações dogmáticas e distorcidas das Escrituras para justificar a exclusão ou a discriminação, está a ignorar a mensagem central do cristianismo que sempre foi a de acolhimento, igualdade e amor incondicional. O legado de Francisco é, assim, tão inspirador quanto inacabado e a grande questão que se coloca agora é saber se haverá vontade e coragem para continuar a abrir as portas que ele apenas conseguiu entreabrir.
A verdade é que a visão de Francisco nunca foi consensual dentro da própria instituição que liderava, mas parece-me ser a única capaz de garantir a relevância da Igreja no mundo atual. Num tempo marcado por transformações sociais profundas, por uma crescente valorização dos direitos humanos e pela exigência de instituições mais transparentes e inclusivas, a proposta de uma Igreja aberta, dialogante e comprometida com a dignidade de todos torna-se não só desejável, mas necessária. Ignorar essa urgência é condenar a Igreja a um isolamento progressivo, incapaz de dialogar com as novas gerações e de responder às inquietações do presente. Ao mesmo tempo, a morte deste Papa acontece num momento de profunda polarização global, marcada por retrocessos democráticos, ataques sistemáticos aos direitos civis e a normalização do discurso de ódio. Assim, é também neste contexto que o legado de Francisco se torna ameaçado.
O futuro próximo será decisivo para a Igreja Católica e o conclave que se aproxima terá um impacto profundo na sua trajetória. Infelizmente, a minha visão é a de que a eleição de um sucessor de Francisco tenderá a ser um retrocesso. Dado o contexto atual e as divisões internas que marcaram o pontificado de Francisco, considero provável que a Igreja, neste momento de transição, opte por um líder mais conservador, que feche as portas que Francisco ousou abrir. Este retrocesso será, sem dúvida, um dos maiores desafios para a Igreja, pois enfraquecerá a sua capacidade de se conectar com as realidades contemporâneas e afastará ainda mais os fiéis que procuram uma Igreja mais inclusiva e atual.
Francisco não foi um revolucionário absoluto, nem um reformador sem falhas. Mas foi, acima de tudo, um líder corajoso, e isso, no contexto de uma instituição, muitas vezes paralisada pelo peso da tradição, distingue-o profundamente. A sua coragem é refletida nas mudanças que ousou iniciar, abrindo caminhos, levantando questões e apontando direções que antes pareciam impensáveis. Infelizmente, como tantas vezes na história da Igreja e do mundo, os avanços correm o risco de ser seguidos por recuos. Cabe agora aos que continuam, dentro e fora da instituição, manter viva a esperança e o espírito de abertura que Francisco representou. Cabe-nos, a todos, assegurar que as portas que ele teve a coragem de abrir não sejam agora novamente fechadas.