O Choque Elétrico Chinês no Mundo Automóvel
Fará, em maio deste ano, 2 anos que o primeiro carro da BYD se vendia em Portugal. Foi precisamente em maio de 2023 que se entregaram as chaves de um BYD Han, o modelo premium da marca, a um comprador num stand de Vila Nova de Gaia. Passados alguns meses, eram entregues as primeiras encomendas dos dois outros modelos vendidos na altura em Portugal, os SUV’s Atto 3 e Tang.
Desde maio de 2023, o mercado automóvel sofreu uma metamorfose rápida e violenta, que beneficiou a BYD e outras marcas chinesas que chegaram ao mercado nacional e europeu e o tomaram de assalto. Dos 20 a 25% que os elétricos ocupam nas vendas mensais de carros novos em Portugal, a BYD ocupa já um lugar acima da norte-americana Tesla, no 14º lugar no panorama geral das vendas.
Este crescimento astronómico dos fabricantes de automóveis chineses é mais do que o produto de tendências do mercado – o sucesso dos carros chineses é um resultado de décadas de estratégia económica por parte do governo chinês, de uma abordagem pensada de propósito para um mercado diferente do de outras épocas e do declínio das tradicionais fabricantes de carros.
As origens humildes e a aposta de Pequim:
O esforço de criação de uma indústria automóvel na China surgiu nos anos 80, com a introdução da política de “três grandes, três pequenos e dois mini”, numa tentativa de concentrar todos os esforços de inovação em três grandes empresas produtoras de carros.
Desta política nasceram algumas joint ventures com marcas ocidentais que montaram algumas fábricas na zona de Shanghai, capazes de abastecer o ainda modesto mercado de uma economia em inícios de desenvolvimento com carros ocidentais produzidos em território asiático. Enquanto a tecnologia estrangeira entrava sem restrições e podia ser estudada pelo jovem setor industrial, as marcas tinham o privilégio de se aproveitar da mão de obra a preço de desconto para dominar um mercado recentemente aberto.
Da parte dos fabricantes nacionais que não estavam integrados nas joint ventures, os carros chineses eram mecanicamente um desastre, fruto de uma falta colossal de know how, capacidades de engenharia ou design, e um setor industrial com sérias dificuldades de produzir componentes complexos de motores a combustão e materiais com qualidade suficiente para os chassis ou interiores. Os carros chineses eram, até ao início dos anos 2000, fracos, frágeis e feios.
A lição a tirar deste contexto era simples - a China não tinha hipóteses de competir no mercado automóvel no que dizia respeito aos carros a combustão.
No final dos anos 90, perante do crescimento da frota a combustão e da poluição sufocante nos centros urbanos, a China, prestes a tornar-se a maior importadora de petróleo do mundo, reagiu como só um governo autoritário poderia: com um plano econômico de longo prazo focado nos ‘veículos de energias novas’.
O facto de, nesta altura, a indústria nacional da China já conseguir explorar os vastos recursos minerais de que o país dispõe permitiu que se estabelecesse uma ampla indústria de baterias, maioritariamente orientada para pequenos eletrónicos e computadores. Graças à concessão massiva de subsídios governamentais e linhas de crédito favoráveis, estes fabricantes de baterias reorientaram uma grande parte do seu negócio para a indústria automóvel.
Pelo seu lado, o governo fez esforços de eletrificação das frotas de transportes públicos das grandes cidades, garantindo mercado aos fabricantes de elétricos. As empresas responderam rápido, e milhares de autocarros, táxis e camiões elétricos começaram a sair das fábricas a velocidade recorde, consolidando o novo mercado automóvel chinês.
Esta estratégia de subsidiação acabou transposta para o setor privado, juntamente com algumas medidas ao nível de acesso a postos de carregamento, estacionamento e facilidade de compra, e os resultados estão à vista de todos – em 2024, mais de metade dos carros novos vendidos na China foram elétricos.
Mas mais do que isso, as características específicas do tecido industrial chinês mostraram-se perfeitas para acompanhar esta mudança de estratégia económica.
O grande salto em frente:
Se o problema dos carros a combustão interna era a dificuldade de produzir motores, transmissões e sistemas de direção, tudo isto são não-problemas para os elétricos. Com experiência no domínio tecnológico e das baterias, a principal dificuldade dos empresários chineses estava na falta de designers com experiência no mundo automóvel. Mais uma vez, o que a China não tinha, foi buscar ao estrangeiro – contrataram-se designers, consultores e peritos com currículo feito em marcas ocidentais, que, se não tinham lugar nas empresas do setor na Europa ou na América, tê-lo-iam certamente no oriente. A título de exemplo, Wolfgang Egger, antigo chefe de design da Alfa Romeo e da Lamborghini, está por detrás de alguns dos mais recentes modelos da BYD.
No entanto, a força da indústria automóvel chinesa vem principalmente da maneira como está organizada. Enquanto as antigas marcas convencionais têm uma cadeia de produção altamente complexa, dependente de vários fornecedores, de várias regiões, e recorrem frequentemente ao outsourcing para tarefas como o design ou criação de sistemas eletrónicos, as empresas chinesas adotam uma estratégia de integração vertical da sua cadeia de valor, concentrada maioritariamente dentro da China, que permite que uma gestão mais eficiente de todo o processo, desde a extração de materiais brutos até ao produto final, com resultados mais baratos e mais consistentes.
Mais uma vez, a gigante BYD é o exemplo mais claro disto – as matérias-primas são extraídas e refinadas maioritariamente na China, as baterias e componentes são todas fabricadas pela marca, pesquisa e desenvolvimento são levadas a cabo pela própria empresa e tanto os sistemas informáticos como o design são feitos in house. Ora, todo este controlo permite que se cortem todos os custos possíveis para fazer o produto o mais barato possível.
A derrapagem das marcas convencionais:
Hoje, a superioridade da indústria automóvel já não é só o produto de mão-de-obra barata, subsídios governamentais e escassas regulações ambientais. Enquanto as marcas convencionais se agarram ao mercado dos carros a combustão interna e baseiam muita da sua imagem na fiabilidade e herança histórica, o facto é que isto, juntamente com o facto de terciarizarem aquela que é a parte mais importante de um automóvel moderno – os sistemas informáticos, torna marcas que outrora dominavam mercados em operações ineficientes e morosas na adoção de sistemas novos e de desenhos de ponta.
No mundo dos carros elétricos, a fiabilidade mecânica não chega sequer a ser um fator, e a verdade é que as marcas chinesas oferecem um produto inovador, bem desenhado e apelativo a um consumidor moderno, mais focado na eficiência, no conforto e na facilidade de uso diário do carro do que na confiança numa marca ou na sensação de condução.
O choque elétrico que as ofertas do oriente têm dado ao mundo automóvel, e o consequente desespero das marcas em manter a sua posição no mercado tem forçado as marcas a repensarem-se e a reinventarem-se – a Volkswagen decidiu, com a introdução do ID. Every1, apostar num pequeno citadino elétrico, que não tenta ser mais do que isso, e que chega como um novo carocha para a idade moderna. Da mesma forma, a Renault decidiu fazer algo parecido, com uma assunção ainda mais frontal do retorno às origens, com o Renault 5.
Se, noutros tempos, a China aprendeu com o Ocidente, talvez esta seja a hora de o Ocidente se aperceber que foi caminhando sonâmbulo para uma situação em que tem algo a aprender com a China. Para já, o setor automóvel começa a aprender e pode ser que no futuro outras indústrias lhe sigam o exemplo. Restará, no fim, saber se o poder político terá coragem de meter prego a fundo e ajudar nesse processo, ou se preferirá andar eternamente às voltas à procura de uma solução.

