Feliz Ano Velho
ARTIGO
Antes de começar a explorar as questões que motivam este texto, sinto a obrigação de dizer que o título deste artigo foi objeto de um furto cometido por mim e que tem como vítima Marcelo Rubens Paiva, que, em 1982, escreveu o livro Feliz Ano Velho. Este excelente título é perfeito para este texto, como o caro leitor verá. Não vejo a minha conduta como furto, mas como uma homenagem, embora duvido que este argumento seja convincente, juridicamente.
Feita a minha confissão, comecemos.
Há poucas coisas que me irritam tanto quanto a expressão “sem precedentes”. Não é a expressão em si que gera em mim tamanha irritação, mas o facto de que ela é empregada, quase sempre, de forma errada, por pessoas que, na realidade, buscam alguma forma de enfatizar a gravidade do tema que estão discutindo. Quase nada é sem precedentes. A história do mundo é longa o suficiente para que tenhamos precedentes para quase tudo.
A ideia para este texto surgiu enquanto eu assistia a uma entrevista feita ao apresentador, entrevistador, comediante e escritor, Jô Soares, realizada pelo programa brasileiro de entrevistas Roda Viva. O episódio do programa, que ainda existe, foi gravado em 1995, há exatos 30 anos. Nela, em determinado momento, é abordado o tema do “politicamente correto”, por um entrevistador que começa a sua pergunta com “nós estamos vivendo num mundo do politicamente correto”.
Esta pergunta trata o fenómeno do politicamente correto como algo novo. Hoje, este tema tão popular, que inspira livros, artigos e documentários, é sempre discutido com a mesma surpresa, urgência e ineditismo com a qual era discutido há três décadas.
A guerra entre Ucrânia e Rússia, graves crises económicas, crises habitacionais, ausência de liberdade de expressão e tantos outros fenómenos culturais, económicos e políticos são categorizados como sem precedentes, pelas manchetes dos jornais, telejornais e sites de notícias sensacionalistas.
Quanto à guerra entre a Ucrânia e a Rússia, estamos perante um país com amplo poder bélico, governado por um líder que mascara o seu autoritarismo como democrático e resultado da vontade do seu povo. Sem precedentes? Há precedentes históricos para ocupação antidemocrática e ilegal de um Estado na própria História recente russa.
Quanto às denúncias relativas à ausência de liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Nos anos 50, nos EUA, o House Un-American Activities Committee (HUAC), subcomitê (vinculado ao Senate Judiciary Committee) do Senado, era liderado pelo senador republicano Joseph McCarthy. Nele, “comunistas infiltrados na sociedade americana” eram perseguidos, arbitrariamente detidos e, em determinados casos, condenados à morte[1].
Além de pessoas efetivamente condenadas por espionagem, o comitê baniu e confiscou livros e perseguiu escritores e atores—como Arthur Miller, Luis Buñuel e Charlie Chaplin—considerados suspeitos de ligações com o Partido Comunista, com a União Soviética e demais práticas e características consideradas, pelo comitê, como “anti-americanas” e que atentavam contra a integridade da sociedade americana. Os perseguidos pelo comitê eram adicionados à blacklist de Hollywood e eram vítimas de ostracismo, sem conseguirem trabalhar nos seus respectivos ramos.
O exemplo do McCarthism é somente um de alguns exemplos possíveis que tornam óbvio que, mesmo nos EUA—visto, frequentemente, como grande bastião das liberdades individuais—, há precedentes históricos tenebrosos para restrições indevidas a liberdades, como a de expressão.
Os problemas de hoje, se reduzidos às suas questões essenciais, raramente, são novos. As críticas feitas à Democracia, por Sócrates, Platão e Aristóteles ainda são relevantes, mesmo após 2500 anos. O conceito de Banalidade do Mal, criado por Arendt, na segunda metade do século passado, continua sendo relevante e útil para explicarmos determinados fenómenos políticos e sociais, sendo escritos, todo ano, inúmeros livros e teses de doutoramento que tentam revisitar e “reabilitar” a sua teoria, que tão atual, não requer (nem admite) reabilitação. Por fim—e o meu exemplo favorito—, Walter Benjamin, que, em 1935, escreveu A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Benjamin escreveu o livro em questão há exatos 90 anos, mais de oito décadas antes de ele atingir o seu ápice de atualidade e relevância. Para quem não leu o livro, somente com o título e vivendo na Era da IA, é até difícil imaginar sobre o que é o livro se não sobre inteligência artificial.
É evidente que se nos ativermos a determinados pormenores, tudo é novo. É evidente, recuperando o exemplo de Benjamin, que a inteligência artificial traz desafios nunca antes enfrentados e questões nunca antes pensadas. Mas não completamente. Há problemas que apenas parecem ser novos, mas não o são. Nestes casos, deixamos de carregar o peso de sermos os primeiros. O peso que passamos a carregar vem, exatamente, de não sermos os primeiros e, assim, termos algum dever de aprender com o que já aconteceu.
Se por um lado, a noção de que determinado fenómeno é “sem precedentes” serve para atribuir gravidade a determinado acontecimento, afirmar que há, sim, precedentes históricos para determinado acontecimento é uma estratégia utilizada para minimizar a gravidade da situação noticiada. Num caso, a ideia é gerar pânico por estarmos vivendo algo completamente novo. Noutro, o objetivo é dizer: “a humanidade já passou por isso e não acabou”.
Durante a pandemia de COVID-19, de 2020, por exemplo, eram tecidos paralelos com a Gripe Espanhola (1918–1919) e com a Peste Negra (1347–1351). Embora a humanidade não tenha sido extinta com as duas últimas, um terço da população europeia foi dizimada.
A honestidade está—como muito frequentemente está—numa zona cinzenta. Havia, sim, em 2020, precedentes históricos para uma grande pandemia com resultados catastróficos, mas não havia precedentes para uma pandemia verdadeiramente global, uma vez que o mundo nunca foi tão globalizado e o fluxo de pessoas, capital e informação nunca foi tão intenso. Então, em situações como estas, o que fazemos? Devemos nos apavorar por sermos os primeiros a enfrentar algo ou devemos minimizar a importância dos desafios que se apresentam? É claro que a única resposta razoável é: “nenhuma das duas opções”. Devemos entender os fenómenos que surgem, sendo a História útil para que entendamos como determinados cenários podem se desenvolver.
O mais fundamental é entender que a História não vincula a humanidade e o seu futuro. Uma estratégia ter sido sempre bem-sucedida não garante que ela continuará dando bons resultados. Da mesma forma, não é por uma estratégia nunca ter sido bem-sucedida, ou nunca sequer ter sido colocada em prática, que não será a melhor opção para casos atuais ou futuros.
No meu último texto, apresentei a ideia hegeliana de que a Filosofia e a História sempre chegam tarde demais. Não tenho a ilusão ou a ingenuidade de que nós iremos aprender o que quer que seja com a História. Sou, porém, ingênuo o suficiente a ponto de acreditar (sendo mais wishful thinking do que uma real crença, admito) que podemos aprender a dar o devido valor a História e atribuir a devida gravidade aos desafios, crises e guerras que vão surgindo.
Porto, 2025.
Daniel Sister.
[1] Julius e Ethel Rosenberg, por exemplo.