Antes do Virar da Página
ARTIGO
Não acho que o conceito de conflito de interesses seja completamente abstrato, porque, dentro do âmbito da sua subjetividade, a certeza de que um existe não se relaciona diretamente com os efeitos que o mesmo causou, mas antes com existência de uma situação que inspira desconfiança e em que se criam meios de obtenção de vantagens. O caso Spinumviva desencadeou uma crise política em Portugal no início de 2025, culminando na queda do Governo liderado por Luís Montenegro. A controvérsia surgiu quando foi revelado que a empresa de consultoria mencionada, fundada por Montenegro em 2021 e posteriormente transferida para a sua esposa e filhos, continuava a receber pagamentos significativos da Solverde, operadora de casinos com concessões estatais. Este relacionamento levantou suspeitas de conflito de interesses, especialmente após a aprovação de alterações à lei dos solos, que poderiam beneficiar os negócios da empresa. Montenegro nega qualquer irregularidade e alega ter alienado a sua participação na empresa, antes de ter assumido o cargo político que ocupa. Na minha visão, deve reprovar-se, mais do que tudo, a posição em que Luís Montenegro se viu enquadrado. O foco da minha reflexão não se traduz na tentativa de dar certeza a possíveis especulações, mas sim de desenvolver o porquê de achar que o mesmo podia ter evitado o clima de instabilidade política em que colocou Portugal.
A crise que nos levará, de novo, às urnas não pode ser reduzida a um simples erro de comunicação ou a um mal-entendido ultrapassado com um artigo de jornal. Mais do que uma falha de comunicação, foi uma falha de responsabilidade política. O padrão é preocupante. A questão aqui não é apenas legal: é política e moral, e, num país onde a confiança nas instituições é frágil, estes sinais são corrosivos. A responsabilidade política exige mais do que “desmentidos” tardios ou a confirmação de que uma empresa existe e presta serviços. O que esteve — e está — em causa é a fronteira entre o exercício do poder e os interesses privados de quem o exerce, assim como a forma como essa proximidade é gerida.
Optar pelo silêncio não foi a melhor opção, mas não é apenas o silêncio inicial que deve ser apontado ao Primeiro-Ministro, é a opacidade com que a situação foi tratada desde o início, recusando-se a esclarecer os contornos da relação com a Spinumviva, provavelmente por não os poder dar, permitindo que a desconfiança se enraizasse. Em democracias que considero mais maduras, como a Dinamarca ou o Canadá, a simples suspeita de conflito de interesses basta para que o político em causa seja afastado temporariamente das suas funções ou para que se abra um inquérito independente com total transparência. Por exemplo, Justin Trudeau enfrentou investigações relacionadas com conflitos de interesse, quando, em 2019, foi considerado culpado de tentar influenciar o Procurador-Geral num processo judicial que envolvia a empresa SNC-Lavalin e, mais tarde, em 2020, foi, ainda, investigado pela sua relação com a WE Charity, organização que celebrou um contrato público com o Estado. Aliás, em situações de natureza semelhante, é hábito nestes países colocar as empresas sob uma gestão profissional independente de modo a evitar este tipo de contornos. Em Portugal, a normalização da promiscuidade entre poder político e interesses empresariais continua a ser encarada com complacência. O facto de Luís Montenegro não ter agido da forma mais ética em diversas vertentes parece-me ser suficiente para desmascarar a sua narrativa de relativização da polémica.
Não se trata de considerar os políticos suspeitos por terem passado pela vida empresarial. Longe disso. A experiência no setor privado é valiosa e desejável, mas quando existe um envolvimento direto ou familiar com empresas que têm contratos públicos, a fronteira entre o interesse público e o privado torna-se demasiado ténue. E é por esta razão isso que a resposta não pode ser o silêncio ou a expectativa de que os factos, mais tarde, falem por si. E aqui, Montenegro falhou, não só pela demora, mas por nunca ter demonstrado verdadeiro desconforto com a situação, como se o escrutínio fosse um incómodo injusto.
Montenegro continua a desvalorizar o caso, recorrendo à narrativa de que “não há provas de ilegalidade” e que se trata de um ataque político da oposição, mas considero que a exigência ética dos representantes públicos não se esgota no cumprimento da lei – exige-se mais: integridade, distanciamento dos interesses particulares, e, sobretudo, responsabilidade perante o povo. Quando um governante está envolvido em decisões que favorecem, direta ou indiretamente, os seus círculos próximos, há um claro problema de transparência e de confiança, e o mínimo que se exige é um esclarecimento imediato e cabal.
Também não é honesto afirmar que esta crise foi criada artificialmente por uma oposição precipitada. A moção de confiança foi rejeitada porque o Governo perdeu autoridade e legitimidade perante o Parlamento e o país. A estabilidade não se impõe por decreto, nem se sustenta apenas na aparente calma das sessões parlamentares. Se bastou a menção do nome de António Costa num parágrafo para, e bem, se criar um clima de insegurança política, acho que é coerente afirmar que, da mesma forma que o mesmo não tinha condições para continuar a exercer as funções de Primeiro-Ministro, Montenegro também não reúne as mesmas.
Não podemos cair no erro de achar que o voto dos portugueses irá funcionar como um exame ao caráter de Luís Montenegro. As eleições não apagam suspeitas. Parece-me que o mesmo está a tratá-las desta forma, mas o seu objetivo deve ser perceber se os portugueses acham que a posição em que se encontrava Montenegro é reprovável e se situações semelhantes no futuro devem ser padrão. O país precisa de começar do zero em alguns aspeto e antes de discutirmos o espectro político-económico em que as políticas se devem enquadrar, devíamos apostar em líderes que coloquem o país longe de controvérsias.